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Evolução da democracia direta na América Latina

O artigo estuda a evolução da democracia direta na América Latina a partir da redemocratização da região; especialmente, dos referendos e plebiscitos. A primeira seção mostra a progressiva expansão da democracia direta. A segunda explora as oportunidades e os riscos das consultas públicas na região. A conclusão reflete sobre o alcance e as implicações das críticas à democracia direta.

Introdução[1]

A democracia direta — sobretudo seus principais instrumentos, o referendo e o plebiscito —, como mecanismo por meio do qual a cidadania intervém diretamente na definição de questões públicas, ocupa um lugar complexo na história e no debate da democracia. Hoje considerada um fator enriquecedor da vida democrática, embora não isenta de riscos, foi historicamente objeto de um olhar receoso.

Com efeito, a democracia moderna, esboçada na segunda metade do século xviii, teve uma raiz representativa, liberal e republicana. A desconfiança em relação à participação direta, maciça e permanente da população constituía o padrão comum. Em função dessa visão restritiva, de viés elitista, o acesso à cidadania foi reservado a um segmento reduzido. E mesmo para esse núcleo, a escolha do mandatário era indireta.

Nesse ambiente, a democracia direta era considerada, no melhor dos casos, uma peculiaridade aplicável muito localmente ou uma prática excepcional para questões mais amplas, como o pertencimento de uma região à nação. Em contextos menos conturbados, uma conjunção atípica de circunstâncias podia desembocar em uma consulta popular. Entre 1900 e 1980, foram realizados 38 referendos na América Latina (Welp & Serdült, 2010, pp. 26-27).

No pior dos casos, a democracia direta era associada a autoritarismos de base popular e voto controlado pelo governo, uma reputação sulfurosa oriunda dos plebiscitos promovidos por Napoleão III para se consolidar no poder a partir de uma relação com o povo que excluía as instituições. Gabriel García o imitou na aprovação da Constituição do Equador, em 1869, em um dos primeiros plebiscitos latino-americanos. Em diferentes contextos, o guatemalteco Jorge Ubico organizou uma consulta pública em 1935, a fim de continuar no poder, enquanto, no Haiti, François Duvalier lançaria mão do mesmo instrumento, em 1961 e 1964, para instaurar uma ditadura vitalícia e hereditária.

[1] Este texto baseia-se no capítulo “Democracia directa en América Latina: el referéndum” (in Ballivián, 2021). Nele se apresentam mais exemplos nacionais e referências que, por razões de formato, não foram incluídas neste artigo.

[…]  o referendo constituiu uma figura idealizada para superar as insuficiências da democracia.

Na contramão disso, o referendo constituiu uma figura idealizada para superar as insuficiências da democracia. No início do século xx, Ostrogorski o defendeu como meio de aprofundar o debate, melhorar as decisões, fazer frente à rigidez dos partidos e sua pretensão de oferecer respostas para todas as questões coletivas (Ostrogorski, 1979, pp. 256-261).

Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, continuou sendo um mecanismo pouco frequente. O único líder democrático que recorreu ao referendo de forma periódica foi Charles de Gaulle. Na América Latina, simbolizou a democracia uruguaia, que entre 1958 e 1971 organizou quatro plebiscitos de reformas à Constituição.

Desde o final do século xx, a democracia direta ganhou relevância na América Latina, tornando-se a região mais propensa a lançar mão de seus diversos mecanismos. O referendo é o mais chamativo deles, dado seu potencial de engajamento do conjunto da cidadania, seus traços eleitorais, o caráter dramático da luta entre duas opções por diferença de um voto; mas não é o único. As legislações incluíram a iniciativa legislativa popular, o orçamento participativo, a consulta prévia a comunidades sobre a exploração de recursos naturais, os conselhos etc.

Esses instrumentos foram reivindicados como idôneos para melhorar a democracia, incentivar a participação cidadã, aprofundar o debate sobre assuntos relevantes, aproximar o Estado e a cidadania. Refletiram também a crescente desconfiança nas instituições e nos representantes. Paralelamente, persiste a suspeita de que tais instrumentos possam ser utilizados, ou diretamente manipulados, por esferas governamentais para aumentar o poder dos mandatários, enfraquecer as instituições e, paradoxalmente, empobrecer a democracia. Essa dupla leitura identificou o ponto de tensão da democracia direta na América Latina (Altman, 2010, pp. 9-34; Lissidini, 2015; Welp & Serdült, 2008).

Este texto estuda a evolução da democracia direta, especialmente do referendo, na América Latina desde a redemocratização da região. A primeira seção mostra a progressiva expansão da democracia direta. A segunda explora suas oportunidades e riscos. A conclusão reflete sobre o alcance e as implicações dos questionamentos da democracia direta.

Expansão e extensão das consultas públicas e da democracia direta

Quando a via democrática foi reaberta na América Latina, em 1978, a democracia direta, especialmente o referendo e o plebiscito, era algo raro nas constituições da região, de tradição representativa. Paulatinamente, foi sendo assimilada, em termos legais e práticos, como uma nova e importante dimensão da democracia (Zovatto, 2014, pp. 13-70). De fato, desde 1978, foram celebrados mais de sessenta referendos e plebiscitos nacionais na região, e treze de seus países convocaram ao menos um. Somente El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana não realizaram nenhum.

[…] desde 1978, foram celebrados mais de sessenta referendos e plebiscitos nacionais na região, e treze países convocaram a menos um. Somente El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana não realizaram nenhum.

Na década de 1970, houve três experiências díspares: o plebiscito uruguaio de 1971, realizado sob parâmetros democráticos; o chileno de 1978, de viés autoritário; e, nesse mesmo ano, na transição equatoriana. Neste país, a Junta Militar submeteu a consulta pública a aprovação de uma Constituição redigida por uma comissão nomeada por ela própria, oferecendo como alternativa a reforma da Constituição de 1945, elaborada por outra comissão também designada pelo regime. Em uma modalidade excepcional, os votantes deviam escolher entre dois textos em vez de votar sim ou não. Optaram pelo novo projeto.

Na década de 1980, houve nove referendos e plebiscitos, todos no Cone Sul. O uso desse instrumento foi ampliado por governos autoritários, confirmando que consultas públicas e eleições não indicam por si sós o caráter democrático de um regime, que depende do contexto político e institucional da sua realização.

Três desses referendos foram organizados no Chile, o país que mais recorreu a esse instrumento nessa década. O de 1980 visava aprovar a Constituição, em um cenário sem garantias para a oposição; com o de 1988, os eleitores puseram fim à continuidade de Augusto Pinochet no poder, abrindo caminho para a democratização. Em 1980, os militares uruguaios convocaram um plebiscito. A oposição conseguiu então promover o rechaço ao regime, e os órgãos eleitorais contaram os sufrágios de forma imparcial. A vitória do não preparou o terreno para a redemocratização.

As democracias renascentes avançaram nessa trilha, porém em muitos casos desprovidas de mecanismos jurídicos claros e, portanto, com certa insegurança legal, institucional e política. Em 1984, a Argentina realizou um referendo não vinculante sobre o acordo fronteiriço do canal de Beagle com o Chile.

Na última década do século xx, o número de consultas públicas dobrou, chegando a vinte, sete das quais no Uruguai, impulsionadas pelo ativismo da Frente Ampla e dos sindicatos, que buscavam frear impulso do liberalismo econômico. O êxito dessa estratégia debilitou o governo de Luís Alberto Lacalle e, a partir da vitória de Tabaré Vásquez, líder da Frente Ampla, nas presidenciais de 2004, o recurso ao referendo refluiu.

A década se encerrou com um movimento que selaria o início do século xxi. Em 1999, na Venezuela, o vitorioso governo de Hugo Chávez organizou um referendo para convocar uma Assembleia Constituinte, seguido de outro, para aprovar a Constituição por ela elaborada. A experiência teve como precedente o referendo peruano de 1993 sobre a Constituição emanada da Constituinte que Alberto Fujimori preparara para legitimar o “autogolpe” do ano anterior.

Com isso, houve um deslocamento geográfico do Uruguai para a região andina, marcada pela chegada de partidos e líderes com mensagens de ruptura do statu quo (Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador). Ambos usaram o referendo para consolidar e legitimar seu projeto. A sistemática convocação de referendos por iniciativa presidencial — dito de outro modo, de cima para baixo — pode ser associada a riscos de retrocesso na qualidade da democracia (Lissidini, 2015, pp. 149-157). Por meio de referendos foram aprovadas constituições que deram novos poderes ao presidente, incluindo a possibilidade de reeleição, e mais instrumentos de democracia direta, muitos deles passíveis de serem ativados por meio de iniciativa popular.

A região registrou dezoito referendos na década de 2000, com a Bolívia à frente (4), empenhada em canalizar institucionalmente um conflito difícil, com assomos de crise de Estado. Isso explica por que o arcabouço jurídico das consultas no país foi construído ad hoc. Com o último, em 2009, durante o primeiro mandato de Morales, foi aprovada a nova Constituição.

Nessa década inaugurou-se uma nova modalidade específica de referendo: o revogatório do mandato presidencial, inexistente na legislação mundial para esse cargo. Foi aplicado em 2004 na Venezuela, contra Chávez, e na Bolívia, em 2008, contra Morales. Ambos os presidentes derrotaram a oposição. Já o referendo mexicano de 2022 teve a peculiaridade de ser patrocinado pelo próprio governo, com a reticência da oposição.

Na década de 2010, o número de referendos e plebiscitos nacionais na região caiu para dez. A máquina anterior se esgotou, paralelamente à debilitação dos governos de Chávez e de seu sucessor, Nicolás Maduro, de Morales e Correa. O alto-relevo político dos referendos perdeu nitidez, como no peruano de 2010, que teve por objeto a restituição de contribuições ao Fundo Nacional de Habitação (Fonavi), e no paraguaio de 2011, sobre o voto no exterior.

A distribuição geográfica continuou concentrada nos Andes, onde as consultas muitas vezes geraram ásperas controvérsias em contextos de grande polarização. O Equador liderou em quantidade de referendos no período. Paradoxalmente, o primeiro (2011) deu suporte a Correa, e o último (2018) negou-lhe a opção de voltar à Presidência. Destacam-se também os dois de 2016: o colombiano sobre o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), no qual o governo saiu derrotado, complicando sua implementação, e o boliviano, que vetou mais uma reeleição de Morales, apesar de o governo ter forçado uma solução favorável para seus interesses por meio do Tribunal Constitucional.

Na América Central, o referendo é pouco utilizado. Somente o da Costa Rica, em 2007, sobre o Tratado de Livre Comércio (tlc) com os Estados Unidos, polarizou o país e resultou na aprovação por uma margem estreita. A América do Norte permanece refratária em nível nacional. No México, foi utilizado pela primeira vez por Andrés M. López Obrador. O Cone Sul, com a exceção do Uruguai, recorre a ele com parcimônia.

A diminuição dos referendos e plebiscitos nacionais a partir da metade na década de 2010 livrou esses instrumentos das amarras circunstanciais a um projeto ideológico concreto, pois os regimes que os acionaram como meio para governar acabaram enfraquecidos (no extremo, Nicolás Maduro, que na prática anulou os referendos revogatórios de 2016 e 2022). Porém, as consultas públicas continuam à disposição dos governos, embora estes saibam que, dada a tendência à personalização, um resultado adverso pode ameaçar seu mandato. E como o instrumento também está ao alcance da sociedade, ainda que com menos frequência ou mais entraves, procuram recorrer a ele de forma mais comedida.

[…] el referendo continúa a disposición de los gobiernos, si bien estos saben que, dada la tendencia a la personalización de las consultas, un resultado adverso lastra la gestión.

A participação nas consultas públicas

A participação nos referendos e plebiscitos apresenta uma constante: é em média inferior à das eleições presidenciais, que conseguem o máximo engajamento. A população encara essas consultas como processos intermediários (no nível dos pleitos legislativos e municipais), que, salvo em conjunturas excepcionais, não suscita tanta mobilização. Mencionado o fator geral, vejamos três grandes fatores específicos que influem no comparecimento.

Primeiro, a cultura política e os níveis habituais de participação. Países com média elevada costumam mobilizar maiores contingentes também nas consultas públicas, como ocorreu, por exemplo, na Bolívia (2016) e no Brasil (2005), onde a participação nos referendos foi de 80,5% e 76,2%, respectivamente. Nos países em que o engajamento eleitoral é baixo, ocorre o inverso. Um caso emblemático foi o referendo sobre o acordo de paz na Colômbia, país com as mais baixas taxas participação eleitoral de toda a América Latina, que teve um comparecimento de 37,4%.

O segundo fator que impacta a participação é o interesse que cidadãos e atores políticos conferem ao objeto da consulta. Quando a matéria é considerada relevante e provoca um debate de posições contrastadas, o comparecimento é maior. Assim, o referendo costa-riquenho de 2007 sobre o tlc com os Estados Unidos atraiu 59,2% dos votantes, enquanto o chileno, de 2020, para convocar a Assembleia Constituinte, 51%, superando as eleições presidenciais de 2013 e 2017.

[…] impacta a participação o interesse que cidadãos e atores políticos conferem ao objeto da consulta. Quando a matéria é considerada relevante e provoca um debate de posições contrastadas, o comparecimento é maior.

A percepção oposta aumenta a abstenção, sobretudo quando a consulta envolve poucas discrepâncias. No referendo guatemalteco de 2018 sobre a disputa fronteiriça com Belize, 95,8% dos votantes aprovaram a iniciativa, mas o comparecimento foi de apenas 26,6%. Em uma categoria parecida se encaixam o referendo para ampliar o Canal do Panamá e o paraguaio, de 2011, sobre o voto no exterior.

Por último, a simultaneidade com a eleição presidencial favorece uma dinâmica de participação: as pessoas comparecem para sufragar o mandatário e, de passagem, votam no plebiscito. Esse expediente é comum no Uruguai, mas raro em outros países. A separação das datas dá maior destaque à questão da consulta, à custa de um comparecimento menor.

Oportunidades e riscos

A democracia direta e, mais especificamente, os instrumentos do referendo e do plebiscito, vêm ganhando legitimidade. Chegaram para ficar. Foram sendo incorporados a um número crescente de constituições, sem maiores recuos, ainda que, por vezes, sofrendo um progressivo abandono ou enfrentando dificuldades impostas pelo aumento das exigências legais para sua realização, especialmente no caso das iniciativas populares.

Constituem uma janela revigorante para a participação cidadã e uma oportunidade para a sociedade definir políticas públicas, leis ou reformas constitucionais. São considerados uma maneira democrática de resolver controvérsias depois de amplo debate. Sem dúvida, enriquecem a qualidade da democracia, desde que cercados de instituições com força para enquadrá-los e oferecer garantias aos atores e cidadãos.

Por outro lado, o referendo e o plebiscito são um meio. Por si sós, eles não melhoram a política proposta. Além disso, comportam um paradoxo que resulta de sua característica central: a intervenção direta e definitória da cidadania. O resultado de uma eleição é percebido como transitivo: cria uma maioria circunstancial que na eleição seguinte pode manifestar preferências opostas; no ínterim, o debate entre ganhadores e perdedores prossegue, e portanto a deliberação mostra-se um traço inerente do regime. A oposição reivindica como ganho legítimo o bloqueio de medidas das quais discorda, mesmo quando estas integram a proposta da situação. Ao contrário, qualquer pretensão de debater ou negociar o resultado de uma consulta pública, mesmo quando resolvida por uma margem mínima, parece espúrio e antidemocrático.

[…] qualquer pretensão de debater ou negociar o resultado de uma consulta pública, mesmo quando resolvida por uma margem mínima, parece espúrio e antidemocrático.

Talvez o principal problema do referendo seja o fato de a população raras vezes responder à pergunta que nele se apesenta; há uma tendência natural dos votantes a se pronunciarem sobre a figura que convoca a consulta, sobretudo quando é o presidente que a promove e demonstra interesse no resultado. O referendo torna-se assim um termômetro da aprovação, o sim ou não ao governo de turno. As perguntas passam a um segundo plano. Os simpatizantes se inclinam pelo sim, os opositores, pelo não, independentemente de sua afinidade com a temática em pauta (LeDuc, 2003). Certa evidência empírica indica que os resultados dos referendos podem ser previstos com base na popularidade do governo, ligada de certo modo ao tempo de mandato; duas variáveis, a priori, independentes das perguntas (Franklin, Van der Eijk & Marsh, 1995, pp. 101-117).

No Panamá, em 1992, a popular temática da reforma constitucional, que incluía a eliminação das Forças Armadas e a criação da Defensoria do Povo, não bastou para neutralizar o desejo de punir o presidente Guillermo Endara. O mesmo destino teve o referendo guatemalteco de 1999: a impopularidade do presidente Álvaro Arzú prevaleceu sobre a aplicação dos acordos de paz que puseram um ponto final à sangrenta guerra civil.

Inversamente, no referendo equatoriano de 2011, dada a disparidade das questões consultadas, houve apenas 5,5 pontos de distância entre o sim e o não. Acima de tudo, os votantes manifestaram seu apoio a Correa. O resultado serviu para afrouxar freios à concentração do poder, acuar a oposição e desequilibrar os pesos e contrapesos institucionais, especialmente os judiciais. A combinação de democracia direta, fortalecimento do poder presidencial e debilitação institucional constitui um dos coquetéis mais perigosos do referendo na América Latina.

O referendo sobre a autonomia departamental na Bolívia, de 2006, confirmou esses nexos. A correlação territorial entre a votação nos constituintes do governista Movimiento al Socialismo (mas) e o não à autonomia departamental, defendido pelo presidente Morales, votados na mesma jornada, superou os 90%.

O referendo implica também um duplo desafio para os partidos. Diferentemente das eleições, em um referendo, os partidos não são necessariamente os atores centrais. De fato, sua convocação pode refletir a vontade do presidente de dobrar resistências, estabelecer um vínculo direto com a população ou buscar uma legitimidade à margem do sistema partidário. Foi o caso das consultas convocadas por presidentes que chegaram ao poder após a renúncia de seus antecessores, tendo eles próprios vínculos frouxos com as principais agremiações — Carlos Mesa na Bolívia, em 2004, e Martín Vizcarra no Peru, em 2018.

Em segundo lugar, a consulta pode dividir transversalmente os partidos e se desenvolver à margem das configurações habituais do jogo político (governo e oposição, esquerda e direita, para citar as mais comuns). Por exemplo, no referendo uruguaio de 1992, o Partido Colorado não conseguiu manter uma posição comum sobre as privatizações, objeto da consulta.

Por último, o referendo reduz as opções e possibilidades de negociação partidária, a margem de concessões recíprocas para obter consensos mínimos. O sim e o não pulverizam as posições intermediárias. Quando a matéria da consulta leva atores políticos de peso a sustentarem posições marcadamente opostas, essa clivagem arrasta o conjunto da sociedade. A polarização é induzida pelo próprio mecanismo. Encerrado o processo, a divisão e a cisão permanecem. Quando um referendo ou plebiscito se resolve com uma maioria contundente, isso costuma indicar que a população dá pouca importância à matéria, o que muitas vezes resulta em baixa participação.

Quando a matéria da consulta leva atores políticos de peso a sustentarem posições marcadamente opostas, essa clivagem arrasta o conjunto da sociedade.

Conclusão: as ambíguas desqualificações da democracia direta

Para a democracia direta, 2016 e 2017 foram anos críticos: os britânicos deixaram a União Europeia, os colombianos rejeitaram o acordo de paz com a guerrilha, os turcos adotaram o sistema presidencialista para favorecer Recyp Erdogan. De repente, as credenciais democráticas do referendo tornaram-se obscuras e suspeitas.

Foram para o banco dos réus a pós-verdade, as manipulações das redes sociais, a falta de conhecimento adequado dos temas em pauta por amplos setores da cidadania. As críticas ao referendo apontaram o caráter volátil do voto, por vezes sujeito a fatores fúteis, como o clima no dia da votação, a obediência às determinações dos partidos, o fato de os eleitores se deixarem levar pela simpatia ou antipatia pelo governo.

Alguns desses argumentos parecem novos, por mesclarem elementos como notícias falsas e manipulação de algoritmos, mas na realidade têm raízes antigas, fincadas na suposta incompetência do cidadão médio e na clarividência das elites, e atualizam alegações esgrimidas no passado para cercear o direito ao voto. Elas reaparecem em ciclos recorrentes (Instituto para la Iniciativa y el Referéndum Europa, 2007, p. 69), e já circulavam no início do século xx (Ostrogorski, 1979, p. 258). As premissas que questionam a democracia direta são perfeitamente aplicáveis às eleições e à própria democracia. A desqualificação do referendo por causa dos resultados que emana solapa as próprias bases da democracia.

Infelizmente, nem os referendos, nem as eleições, nem a democracia garantem decisões sempre “corretas”, encaminhadas ao avanço de seus princípios e voltadas ao bem comum, por mais que a educação cidadã se construa sobre a necessidade de promover esses comportamentos e fornecer ao cidadão os instrumentos para que possa atuar com espírito crítico e autonomia. Seu fundamento mais simples e limitado implica que, dentro de certas regras preestabelecidas de comum acordo, cada cidadão decide segundo seus princípios, valores e interesses, e a preferência majoritária (uma opção no referendo, um candidato ou um partido em uma eleição) aplica-se ao conjunto, dentro de limites igualmente acordados, que na época contemporânea correspondem, sobretudo, ao Estado de direito.

A democracia implica aceitar a decisão da maioria, mesmo com o risco de que ela seja equivocada ou adotada por maus motivos. Risco inevitável, já comentado naquela que é provavelmente a mais antiga consulta da qual temos registro (em um contexto que, evidentemente, não se atém a parâmetros democráticos nem de respeito a direitos). Segundo o Evangelho de São Mateus, Pilatos consultou o povo: “Quem quereis que vos solte? Barrabás ou Jesus, que chamam de Cristo?”. Antes da resposta, houve uma campanha insidiosa: “Os chefes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram as multidões a que pedissem Barrabás e que fizessem Jesus perecer”. O resultado contrariou Pilatos, pois sabia que Jesus fora “entregue por inveja”; insistiu: “Mas que mal ele fez?”. Contudo, dada a insistência da multidão, deixou seguir o curso do clamor, libertou Barrabás e entregou Jesus.

Referências

Altman, D. (2010). Plebiscitos, referendos e iniciativas populares en América Latina ¿mecanismos de control político o políticamente controlados? Perfiles Latinoamericanos, 18(35), 9-34.

Franklin, M., Van der Eijk, C., & Marsh, M. (1995). Referendum Outcomes and Trust in Government: Public Support for Europe in the Wake of Maastricht. West European Politics, 18(3), 101-117.

LeDuc, L. (2003). The Politics of Direct Democracy: Referendums in Global Perspective. Toronto: University of Toronto Press.

Instituto para la Iniciativa y el Referéndum Europa. (2007). Guía de la democracia directa – en Suiza y más allá. Ginebra: Instituto para la Iniciativa y el Referéndum Europa.

Lissidini, A. (2015). Democracia directa en América Latina: avances, desafíos y contradicciones. In A. Minnaert & G. Endara (coords.). Democracia participativa e izquierda (pp. 121-190). Quito: Friedrich Ebert Stiftung.

Ostrogorski, M. (1979). La démocratie et les partis politiques. Paris: Seuil.

Romero Ballivián, S. (2021). Elecciones en América Latina. La Paz: idea Internacional, Tribunal Supremo Electoral.

Welp, Y. (2010). El referendo en América Latina: diseños institucionales y equilibrios de poder. Nueva Sociedad, 228, 26-42.

Welp, Y., & Serdült, U. (2008). Armas de doble filo: la participación ciudadana en la encrucijada. Buenos Aires: Prometeo. Zovatto, D, (2014). Las instituciones de la democracia directa. In A. Lissidini, Y. Welp & D. Zovatto (comps.). Democracias en movimiento: mecanismos de democracia directa y participación en América Latina (pp. 13-70). México: unam, idea Internacional.

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